quarta-feira, agosto 18

banco da vida

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Depois do almoço, Adelino vai dar uma volta para espairecer o tédio de não ter nada para fazer. Refugia-se do sol de Verão e entra no aprazível jardim. Está cheio de gente, na sua grande maioria reformados, com tempo livre para passar a tarde, a passear, a ler o jornal ou simplesmente conversar. Aproveitando a sombra dos plátanos, é um hábito vê-los sentados nos bancos, ocupados à volta de um jogo de sueca. Albino decide investigar porque está tão animado um grupo reunido mais além. Jogar às cartas, pode ser uma boa forma de entretenimento. Para quem teve o gosto de conhecer os naipes de copas, espadas, paus e ouros, sabe bem valorizar esses momentos de convívio. É como uma imagem de marca ver alguns reformados que se sentam em redor dos bancos de jardins para bater umas cartas. As discussões sobre quem fez batota cruzam-se com a actualidade do mundo, da cidade e da própria vivência. São autênticos fóruns de opinião onde se fala de tudo um pouco. É para lá que vão praticamente todas as tardes e onde vão “matando” o tempo. - Ás de trunfo… eh eh, esta vasa é minha, gargalha vitorioso o mais velho que participa num torneio improvisado. - Chegue-se à gente homem, não tarda nada e também tem uma vaga para a batotice. Adelino aproxima-se curioso e logo entabula conversa com alguns deles.

Emigrado em França durante 30 anos, João trabalhou nas obras, em fábricas, nas vinhas, e acabou por regressar à sua cidade natal depois de chegar à idade da reforma, ao direito que lhe assiste de ter o estatuto de dinossauro, como orgulhosamente se refere a si próprio. - A mim não! A mim não apanham tão cedo num desses casarões de mortos-vivos, recusa João a opinião do Costa. Esta afirmação não constitui novidade nenhuma, porque qualquer um de nós, provavelmente, pensa no aposentado como o cidadão que, não tendo mais nada para fazer e nada mais espera da vida, mais tarde ou mais cedo vai parar num qualquer lar ou centro de dia a ver televisão ou a dormir a sesta. - Se toda a vida eu trabalhei no duro, anos a fio, e descontei para a Caixa, agora vão de ter de me gramar até ao caixão. Para Arménio da Costa o que faz mais falta é uma presença feminina na sua vida. - Sou viúvo e sinto muito a solidão, confessa, ao que António Ribeiro atalha: - Ouve lá pá, mas então nesse lar todo pimposo onde agora moras, não arranjas companhia? Até já me disseram que há por lá umas senhoras que desenvolvem diversas actividades culturais e lúdicas, ironiza. Quem sabe se não conheces uma bem prendada que te queira aturar e ser tua namorada, pá? Costa recebe uma amigável palmada nas costas, retorquindo: - Já nem sei se me querem para alguma coisa, e recorda com saudade a sua Inês. - Ouçam o que eu vos digo, levanta a voz o Eugénio, muitos que são apanhados pela reforma em pouco tempo viram estorvos. Se um tipo não se põe à tabela ainda virámos vegetais impróprios para consumo... A malta tem é de se ocupar com alguma coisa se não… Fiquem sabendo que eu, todos os dias de manhã, sirvo ao balcão do bar da Associação e olhe que não me pagam um tostão por isso! E… como se chama mesmo o nosso amigo? Adelino. – Pois aqui o camarada Adelino fica desde já convidado a passar por lá, que lhe sirvo um café e, se for vontade do freguês, com cheirinho. - Obrigado Sr. Eugénio, agradeço o seu convite. - Eu é que começo a ficar cansado disto, resmunga Alfredo Santos. Antigamente havia muito trabalho lá na oficina, depois o negócio foi mingando e agora que estou velho, os mais novos já não querem aprender. - Aprender o quê, pergunta-lhe Adelino. - Aprender uma arte como a minha, a de sapateiro. - Mas senhor Alfredo, intervém Adelino, diz-se que é uma profissão que está a desaparecer. - Ah pois diz-se, mas ainda bem que não está. Agora até me custa dar vazão a tanta clientela!Afinal a crise está boa é para mim, sorri Alfredo enquanto baralha um macete. E, como o vício das cartas é grande, se não me ponho a pau lá se vai o negócio. Vá amigo, tome conta aqui do baralho que tenho de ir à minha vida. – Então, quem é a dar? Pergunta Adelino tomando lugar na jogatina. - É minha vez, determina o João. Sabe meu rapaz, virando-se para o Adelino, a este faz-lhe falta um aprendiz que lhe dê uma mãozinha lá na oficina, mas a malta nova não as quer sujar. Ao que isto chegou! Mas diga-me lá, você parece-me ser novo demais para estar reformado, não está? Pergunta a Adelino. - Vá conte-nos o que faz da vida, meu amigo? Pergunta-lhe João. – Olhe, eu estou no desemprego, vai pra mais de meio ano, desde que a fábrica fechou por falta de encomendas, responde cabisbaixo. - E a fábrica era de quê, se não é indiscrição lhe perguntar? - De calçado, responde num suspiro. Foi toda a gente para a rua, de mãos vazias, famílias inteiras com mais de vinte anos de dedicação, tal como eu! Um homem que assistia à partida de sueca e escutava a conversa, coloca a mão no ombro de Adelino e diz-lhe: - Já todos sabemos que jogar às cartas no banco de um jardim há muito que deixou de ser passatempo só para a velhice. No jogo da vida a sorte não se encontra nas cartas, mas sim em quem as distribui. Pense nisso caro amigo e, se entender, siga este conselho. Vá falar com o Alfredo, pode ser que lhe saia o ás de trunfo.



4 comentários:

VAP disse...

Enquanto têm saúde e sol, ainda vá que não vá. O tempo lá vai passando. Pior ainda são as mazelas que a idade traz e o inverno carrega.

Anónimo disse...

Belo retrato da vida de muitos reformados. Vejo postais iguaizinhos diriamente no jardim sobranceiro à minha casa em Lisboa.
Felizmente, apesar de muitas agruras recentes, não me quixo da sorte que a vida me reservou, embora nunca tenha encontrado o ás de trunfo. Nem a manilha, para ser franco...

Teté disse...

Muito bom esse retrato da velhice no nosso país. E também do número crescente daqueles que perderam o emprego e agora são "velhos" para arranjar outro e "novos" para a reforma...

FM disse...

Passo muitas vezes por estas "mesas", por estas jogatinas do "mata tempo"...
Já reparaste na quantidade de histórias que eles devem ter para contar... E será que alguém os ouviria?
Abraço.