sexta-feira, setembro 16

memórias das Mós

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Sei que era cedo, muito cedo. O relógio da sala não havia ainda terminado o seu badalejado acordar e já se ouviam os estrondosos morteiros lançados ao ar para anunciar as festas da Senhora da Soledade. Mós do Douro, terra quente de xisto, polvilhada de videiras, giesta e amendoeiras. O tumultuar abafado dos foguetes estilhaçava o céu turvado e ao mesmo tempo despertava-me da sonolência de mais uma manhã de Setembro. Já de pé, na soleira da velha porta da cozinha, procurei então pelo sol, queria avistar quem lá vinha no horizonte. Primeiro ouvi, escutei o vento tinha parado, mesmo assim senti um arrepio... É então que oiço, num estrondo rasgando os montes, o último orquestrar daquele tambor das trevas... Como que por um instante algo percorreu a minha cabeça... "jamais esquecerei este dia", pensei eu para com o algodão que me cobria o corpo e os branqueados trapos de linho que baloiçavam molhados no estendal. Apesar de sentir algum frio, sentia algo mais, mais que frio, um frio antigo, ao encontro de vários invernos, um frio aconchegante que tomava a liberdade não convidada de ondular pelos nervos mais profundos da minha espinha. Enquanto tentava remeter para a minha imaginação os disparates mais loucos da minha intuição ouço da minha avó o chamamento para a quentura de umas sopas de leite. Escusado será que a muito custo me conseguiu convencer. “Tou à espera do avô que foi buscar água fresca”, respondi-lhe.

Ali até o tempo é falso, o céu é devorador e o chão torturante, tudo cresce mas a muito custo se vive. O povo era abastecido de água do "cano". No fontanário deixavam-se as vasilhas, horas a fio, a “marcar vez”. Depois os corcéis de pêlo pardo, cauda tenebrosa, de busto couraçado e crinas fendidas, transportavam nos seus dorsos o líquido precioso, que nem a poeira mais seca, levantada por poderosas passadas, se atrevia a cobrir, seguras por mãos fortes que as rédeas de grilhões prateados guiavam na dignidade de homens duros do campo. Aquelas serras altas e secas contam o passar dos anos, não param de dançar ao sabor do vento que desaparece e em menos de um abrir e fechar de olhos já o céu brilha, como a quem as nuvens fecham o olhar dos Deuses ao que se ia passar a seguir. O som, os cascos, o tremer do chão, o cheiro intenso e invulgar... o calor, aquele calor. Ali os dias vão e vêem, iguais, mas aquele dia não iria a lugar nenhum. Aquele dia traria a alegria da festa, do baile e do açúcar e o amargo da condição humana. De todos os sentidos, daqueles que teimam em persistir, lembro-me a propósito que a minha audição era o maestro que orquestrava ofegante a minha respiração, como a que um hino compõe a tudo o que via e sentia. O barulho dos cascos misturava-se com o do bater do meu coração, o jogo das cartas, dominó e matraquilhos com a música da orquestra, os passos de dança, de levantar cabelos e fazer saltar boinas das desgastadas nucas com o cada vez mais ensurdecedor trepidar dos foguetes, que como dizem os mais velhos "Festa sem foguetes não é festa!"

São três dias de festa em honra dos santos, em cerimónia com o espírito e o corpo. Um acto de devoção em que a oração vem primeiro, num convívio de gentes, da terra e de fora, numa pagã festividade que ao terceiro final de semana de Setembro invade a pacatez da vila e onde a romaria perdura até que se dê a volta ao Povo. E quando o resquício da última brisa havia contornado a minha face lembrando-me a minha avó que com o anunciar da festa saberia que os meus pais chegariam mais logo, volto a escutar ao fundo da rua o som dos cascos. "Arre macho!". Uma voz familiar trava o animal e, num protector suspirar, sinto então a sombra que já em cima de mim me abraça e me leva pela mão, casa adentro. A última coisa que recordo daquela manhã foi ouvir a terrível notícia trazida do Terreiro pelo meu avô: “o Luís Gaguito perdeu a mão!”.

Jamais esquecerei esse dia, mas nunca soube porquê este personagem não lançou ao ar o último morteiro, deixando que o petardo lhe rebentasse a mão direita, defronte do Café Santos. Mesmo assim, maneta, lá continuou a sua vida de trabalho, de sol a sol, segurando como melhor soube a dignidade de homem duro do campo.

A todos os mosenses e visitantes de tão bela terra desejo que neste fim-de-semana a vossa alegria inunde as ruas das Mós, encha de festa e de cor os vossos corações e liberte emoções em explosões de amor.

2 comentários:

Tó disse...

Lindo...
Embora Homem de poucas lembranças também me lembro desse dia em que o fogueteiro ficou "maneta"....só não sei como é que ainda sabes o nome do "pobre Homem"???? Fos-te ao "copianço"!!!!!

paulofski disse...

Ah pesuuu... Numa das minhas recentes viagens às Mós tive a ajuda de um auxiliar de memória, um nosso vizinho (da casa da avó) o Luís Sequeira (Corticeiro para os das Mós) com quem brincamos nos nossos tempos de menino e que me recordou o nome do pobre homem.

Abraço mano.